O clima que não queremos ter - Eunice
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Entenda os efeitos do aquecimento 1,5°C e além

Em 2023 e 2024, a humanidade teve o primeiro encontro com um aquecimento global de 1,5ºC, o limite proposto pelo Acordo de Paris. Não foi nada bonito. O biênio mais quente desde o início dos registros globais de temperatura, em 1880, testemunhou uma sucessão estonteante de catástrofes climáticas: os piores incêndios da história no Canadá; um recorde de redução de gelo marinho na Antártida; 13 mil mortos por uma única tempestade na Líbia; três megaenchentes num espaço de oito meses no Rio Grande do Sul, inclusive a pior já vista no estado e a maior em área alagada registrada no Brasil, em maio de 2024; a pior seca em 70 anos de registro histórico, que cobriu as capitais brasileiras de fumaça; duas megaestiagens consecutivas na Amazônia e uma no Pantanal; deslizamentos de terra mortíferos no litoral paulista; calor de 48ºC na Europa; centenas de mortes por chuvas extremas na Polônia, no Quênia, no Afeganistão, no Paquistão e na Espanha; quatro tufões simultâneos nas Filipinas; centenas de mortos por um furacão nos Estados Unidos. Nenhum recanto da Terra foi poupado de eventos extremos, e isso pode ser apenas o começo.

O ano de 2024 foi o primeiro a registrar, todos os meses, temperaturas médias globais maiores que 1,5ºC acima da era pré-industrial.

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Segundo o IPCC, o painel do clima da ONU, quase metade da população mundial já vive hoje sob risco climático e enfrentando algum tipo de escassez de água. Embora não exista dose segura de aquecimento global, esses riscos serão potencializados com cada décimo de grau Celsius de aquecimento da superfície terrestre. Mesmo limitado a 1.5°C, teremos impactos irreversíveis, mas haverá contenção da intensificação, diminuindo as chances de outros efeitos extremamente perigosos. Quanto maior o aquecimento, maior é a importância e o impacto causado por cada décimo.

Neste capítulo, você vai entender os principais impactos da mudança do clima e vai saber o que aguarda a humanidade no futuro se tudo der certo no combate às emissões de gases de efeito estufa — e se tudo der errado.

A chave para a compreensão desses impactos, mais uma vez, é a física. Mais especificamente, um número: 3ºC. Esta é a chamada “sensibilidade climática em equilíbrio”, a estimativa do quanto a temperatura média da Terra subiria caso a concentração de gases de efeito estufa dobrasse em relação à era pré-industrial (1850-1900). Os cenários de aquecimento global olham para esse parâmetro e o comparam às emissões observadas e a várias hipóteses sobre as emissões do futuro. A partir daí, modelos computacionais tentam prever como o sistema climático vai se comportar a diferentes graus de aquecimento. Essas simulações carregam um grau enorme de incerteza, e modelos diferentes enxergam o mundo de formas ligeiramente distintas. É por isso que o IPCC usa 23 modelos climáticos diferentes em seus relatórios, e a maioria deles converge no essencial — a saber, o melhor é não deixar as temperaturas saírem de controle.

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O mundo é uma chaleira

Os efeitos da mudança do clima derivam do fato de que a relação entre a atmosfera e os oceanos é perturbada à medida que a temperatura sobe. O aquecimento significa mais evaporação na superfície do mar e, portanto, mais vapor d’água (ele próprio um potente gás de efeito estufa) e energia disponível, bem como modifica a capacidade de retenção de umidade pela atmosfera: ela consegue carregar aproximadamente 7% a mais de vapor d’água com 1°C de aquecimento médio da superfície global. Dessa forma, temos uma maior provisão de umidade para tempestades e ciclones e se aumenta o potencial para eventos extremos de precipitação, visto que as tempestades têm condições favoráveis para se tornarem maiores e mais intensas.

As mudanças climáticas também agravam a escassez de água em regiões predispostas. Temperaturas mais altas aumentam a evaporação do solo e, estando a atmosfera mais sedenta, ela extrai a umidade com mais eficiência, podendo usá-la como combustível para extremos de chuva. Com mudanças nos fluxos de umidade atmosférica e alteração na distribuição da precipitação, temos intensificação de eventos de chuva e seca e esse contraste pode ser amplificado tanto entre regiões quanto entre períodos mais secos e úmidos do ano, com oscilações potencializadas. Isso vale para tempestades, para megaestiagens e também, por paradoxal que pareça, para nevascas: com mais umidade na atmosfera, nos lugares onde chove, chove mais, e onde neva, neva mais; embora a tendência seja de menos ondas de frio à medida que o planeta esquenta, todos os extremos ficam amplificados.

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Corrida de furacão

Katrina, Rita, Irma, Maria, Haiyan, Nargis, Harvey, Idai. Várias das tempestades tropicais mais destrutivas e mortais já registradas na história humana aconteceram neste século. A classificação dos ciclones tropicais depende de sua intensidade e localização. Os menos intensos são chamados de depressões tropicais e, caso seus ventos máximos sustentados cheguem a 63 km/h, passam a ser chamados de tempestades tropicais. Se chegarem a 119 km/h ou mais, os ciclones tropicais recebem nomes conforme sua localização de origem: furacões (no Atlântico, na região central e nordeste do Pacífico), tufões (na região noroeste do Pacífico) ou são chamados apenas de ciclones, independente de sua intensidade (no Oceano Índico e sul do Pacífico). Embora não haja evidências significativas de que os ciclones tropicais estejam ficando mais frequentes globalmente e no longo prazo por conta da mudança do clima, é provável que a proporção dos mais intensos (de categorias 3, 4 e 5 na escala Saffir-Simpson, que mede sua intensidade) e a frequência de eventos de rápida intensificação tenham aumentado globalmente nos últimos 40 anos, segundo o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC. Entretanto, com a compreensão dos princípios físicos das mudanças climáticas antropogênicas, a confiança de que eles se tornarão mais intensos no futuro é bem maior e os modelos climáticos são consistentes nas projeções: é muito provável que a proporção de ciclones tropicais de categorias 4-5 aumente globalmente com o aquecimento.

Expansão térmica contribui com 50% do aumento observado no nível do mar, que foi de 20 cm no mundo todo de 1901 a 2018.

Sexto Relatório de Avaliação do IPCC

O calor adicional tem, ainda, um efeito duplo sobre o nível dos oceanos. Com 1 bilhão de pessoas vivendo a até 10 km da costa no mundo todo, muitas em metrópoles litorâneas como Rio de Janeiro, Xangai, Nova York, Lagos e Dacca, e com pequenas nações insulares erguidas sobre atóis de baixa altitude, como Kiribati, Tuvalu e Nauru, a elevação global do nível do mar é um dos impactos mais temidos da mudança do clima. Ela acontece por três razões: primeiro, pela expansão térmica do oceano à medida que ele esquenta. Quem já viu água ferver numa panela sabe que, como ocorre com qualquer fluido, quanto mais quente, mais volume ela ocupa. Hoje, a expansão térmica contribui com 50% do aumento observado no nível do mar, que foi de 20 cm no mundo todo de 1901 a 2018, segundo o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC.

O segundo fator é o derretimento dos grandes mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida, que juntos armazenam 90% da água doce do planeta. Somente o oeste antártico tem o potencial de elevar os oceanos em mais de 5 metros caso derreta completamente, e há indícios fortes de que esse colapso já tenha começado e seja irreversível (mais sobre isso adiante).

A Groenlândia já foi responsável por outros 10 metros de elevação do nível do mar 125 mil anos atrás, quando seu gelo praticamente sumiu, e nas últimas duas décadas é a maior contribuinte individual para esse aumento, mesmo com um aquecimento global menor que 1,5°C. Juntas, hoje, Groenlândia e Antártida respondem por 20% da elevação do mar. Outros 22% vêm do derretimento de geleiras de montanha, como os Andes, os Alpes e o Himalaia. Um terceiro fator, com 8% do total observado, é a mudança na armazenagem de água nos continentes, com mais água sendo retirada de aquíferos para consumo humano e lançada no mar.

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A depender do cenário de emissões nas próximas décadas, o nível do mar no final do século pode ser de 50 cm a 1 metro mais alto do que no começo do século passado. Parece pouco, mas o principal efeito do aumento do nível do mar se dá durante a maré alta, quando a área alagada aumenta, e em ressacas, que ficam mais frequentes: com 1 metro de elevação do mar, uma onda de 2 metros numa ressaca dobra de tamanho.

A média também esconde variações regionais, que podem ser muito maiores — em especial em lugares como Nova York, onde o terreno naturalmente está afundando. Com 15 cm de aumento de nível do mar em 2100 em relação a 2020, a população exposta a enchentes litorâneas que ocorreriam uma vez a cada cem anos aumentaria 20%; com cerca de 1 m de nível do mar aumentado, ela duplicaria. Ilhas do Pacífico com altitudes máximas de 10 metros tendem a perder território já neste século. Mas, como a subida do nível do mar é um evento de início lento, ela continua acontecendo no futuro: segundo o IPCC, no ano 2300 ela pode passar de 7 metros e não é possível descartar elevações de 15 metros, em ambos os casos forçando um redesenho radical do litoral no mundo todo.

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Este mapa do portal americano Climate Central mostra o que aconteceria com a ilha de Marajó e a região de Belém com 1 metro de aumento do nível do mar. Estamos falando aqui apenas de área submersa e não de zonas atingidas por ressacas.

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Peste, fome, guerra, morte: os quatro cavaleiros do apocalipse climático

O secretário-geral da ONU, António Guterres, chamou os dados do IPCC sobre o futuro climático da Terra de “atlas do sofrimento humano”. Quando o painel divulgou a síntese do seu Sexto Relatório de Avaliação (AR6), destacou que a temperatura da superfície global havia aumentado 1,1°C de 2011 a 2020 em comparação com o período pré-industrial (1850-1900). Esse aumento foi mais rápido desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos. O limite de 1,5°C poderia ser ultrapassado permanentemente em qualquer momento entre 2020 e 2040. A depender do cenário de emissão, o aquecimento da Terra em 2100 em relação à era pré-industrial poderia ser de 1,4°C, na melhor hipótese, a 4,4°C, na pior. Embora o Acordo de Paris tenha provavelmente tirado o planeta da trajetória de 4,4°C, que é o que se veria na ausência de medidas de mitigação, mesmo com as metas dos países a Terra ainda rumava, na terceira década do século 21, para quase 3°C de aquecimento no fim deste século.

Os efeitos da crise do clima podem ser agrupados em quatro grandes categorias, uma para cada cavaleiro do Apocalipse. A primeira são os efeitos para a saúde humana (Peste), principalmente devido ao aumento e o agravamento das ondas de calor. Quanto mais quente a temperatura média, mais episódios de calor extremo durante vários dias seguidos serão observados (em 2023, o Brasil teve nove ondas de calor). Hoje, ondas de calor que aconteceriam uma vez a cada 50 anos na ausência de influência humana já são 4,8 vezes mais comuns e 1,2°C mais quentes; com 1,5°C, elas devem se tornar 8,6 vezes mais comuns e 2°C mais quentes; com 4°C de aquecimento global, elas ficariam 39 vezes mais comuns e 5,3°C mais quentes, o que tornaria áreas do mundo como a Amazônia e a Península Arábica essencialmente inabitáveis. Segundo um estudo, o calor excessivo já suprimiu 5% de crescimento do PIB per capita do Brasil e de outros países tropicais, contra apenas 1% de nações frias ou temperadas como o Canadá e a Finlândia.

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Morrendo de calor: a temperatura do bulbo úmido

Além de afetar a produtividade, o aprendizado e aumentar o risco de morte em crianças e idosos, o calor excessivo provoca o risco de morte por estresse térmico em adultos saudáveis em alguns lugares devido ao aumento da chamada temperatura de bulbo úmido, conhecida pela sigla WBT. Trata-se da combinação de temperatura e umidade do ar. Em situações de aquecimento e umidade elevados, se dificulta a dissipação de calor pelo suor e o organismo pode entrar e colapso. Alguns estudos apontam que o limite de sobrevivência humana é um WBT de 35°C (um calor de 40°C com 75% de umidade relativa do ar, por exemplo, é uma das diversas combinações possíveis para se chegar a este cenário). Também há estudos que apontam que nem sempre é necessário se chegar a uma temperatura de bulbo úmido de 35°C, visto que, a depender das condições, temperaturas mais baixas já podem causar mortes.

Há poucos registros recentes de que esse patamar tenha sido atingido, mas ele pode se tornar comum na Amazônia e no Golfo Pérsico, por exemplo, no final do século.

Ruim para os humanos, excelente para alguns insetos como o Aedes aegypti e outros transmissores de doenças que se reproduzem mais e ficam mais ativos com temperaturas mais altas. A combinação de mais calor ao longo do ano e urbanização ruim já fez o habitat do mosquito da dengue se expandir em regiões como o Brasil. Segundo o IPCC, doenças transmitidas por insetos, pela água e pela comida, como cólera e verminoses, se ampliam em todos os cenários de aquecimento global. “Em particular, o risco de dengue aumentará, com temporadas [de contágio] mais longas e maior distribuição geográfica na Ásia, Europa e Américas Central e do Sul, além da África Subsaariana, potencialmente pondo em risco bilhões de pessoas a mais no fim do século”, afirma o IPCC.

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O segundo cavaleiro do apocalipse climático é a fome. A agricultura é provavelmente a atividade humana mais dependente de um clima previsível — e ela só pôde se desenvolver nos últimos 10 mil anos por causa da estabilidade climática do Holoceno, o período geológico no qual vivemos. Nas últimas décadas, secas e tempestades vêm colocando safras em risco no mundo todo, e eventos extremos como os incêndios na Rússia em 2010 e no Brasil em 2024 elevam o preço da comida, aumentando o número de pessoas em insegurança alimentar.

Segundo o IPCC, secas em regiões semiáridas que normalmente seriam vistas uma vez a cada dez anos hoje já são quase duas vezes mais comuns. Com 4°C, elas seriam quatro vezes mais frequentes, basicamente acontecendo de dois em dois anos. O efeito é devastador não apenas para zonas semiáridas (algumas, como o Nordeste brasileiro, fortemente dependentes da agricultura familiar, mais vulnerável), mas também para regiões de fronteira agrícola, como o Centro-Oeste e o sul da Amazônia.

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Impacto nas compras de supermercado:

também tiveram forte componente climático os choques dos preços do azeite de oliva e do café.

Um estudo da ecóloga Ludmila Rattis, do Ipam, mostrou em 2021 que 28% da região produtora de grãos do Cerrado e da Amazônia já está fora das condições climáticas para a qual as sementes de soja e milho plantadas ali foram desenvolvidas, nos anos 1970. No fim do século, esse índice pode chegar a 74%, forçando a adaptação da agricultura ao seu limite. Também tiveram forte componente climático os choques dos preços do azeite de oliva em 2023 e do café e cacau em 2024. No Brasil, segundo o estudo Brasil 2040, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, a área de cultivo de soja pode cair 39% nos próximos 15 anos; o feijão, arroz e milho safrinha podem ter redução de área cultivável de 26%, 24% e 28%, respectivamente.

No caso da cana-de-açúcar, as áreas cultiváveis podem aumentar, por ser um gênero que precisa de calor, em especial para a produção de etanol. Porém, o cultivo deve migrar para regiões que hoje são mais frias. A produção de mandioca deve sair do Nordeste, muito seco, e migrar para áreas de Cerrado e Amazônia. O caupi, ou feijão-de- corda, já está migrando do Nordeste para o Centro-Oeste.

Com cerca de 2°C de aquecimento, a disponibilidade de alimentos e a qualidade da dieta podem agravar doenças relacionadas à nutrição e aumentar o número de pessoas desnutridas, especialmente na África Subsaariana, Sul da Ásia e América Central. Isso já é realidade hoje: a mudança do clima retardou ganhos de produtividade da agricultura mundial nos últimos 50 anos e a desnutrição já aumentou, afetando sobretudo mulheres, crianças, idosos e indígenas.

O americano David Wallace-Wells, no livro A Terra Inabitável (2019), escreveu que, para cada grau de aquecimento global, a produção de cereais declina 10%. O CO2 adicional no ar poderia ajudar a equilibrar esse declínio, já que em tese é um alimento para as plantas. Só que a fertilização de CO2 aumenta a quantidade de carboidratos fixados pelas plantas e reduz a de outros nutrientes, como proteínas. Isso já está acontecendo com o arroz, base da dieta de pelo menos 2 bilhões de pessoas no mundo. O chamado “colapso de nutrientes” ameaça causar deficiência proteica em 150 milhões de pessoas apenas no mundo desenvolvido até 2050; no Sul Global esse índice será muito maior.

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A guerra é o terceiro cavaleiro do apocalipse climático. O risco de conflito aumenta sobretudo por secas que empurram populações e países inteiros para a sede e a insegurança alimentar (Somália e Darfur são exemplos), mas também por excesso de calor e outros riscos múltiplos que podem levar a migrações em massa.

Segundo o IPCC, com 2°C a água de degelo que hoje alimenta bacias hidrográficas no mundo inteiro deve diminuir 20% e a massa de geleiras deve cair 18%, reduzindo a quantidade de água para a agricultura, a geração de energia e o abastecimento humano. Nas regiões litorâneas e nações insulares, os aquíferos estão ameaçados por intrusão de água salgada do mar. Tal qual ocorreu na Síria na década passada e no Nordeste do Brasil ao longo do século 20, a seca, e seu impacto na produção de alimentos e na saúde, é um fator de risco migratório que pode causar instabilidade política. Hoje, 90 milhões dos 120 milhões de migrantes forçados do mundo vivem em países fortemente expostos a desastres climáticos. Migrantes, seja dentro ou fora das fronteiras de um país, raramente são bem recebidos na sua chegada, e pressionam empregos e infraestrutura no seu destino. Um dos efeitos da guerra civil síria foi o fluxo de 1 milhão de sírios para a Europa, o que aguçou a xenofobia dos eleitores europeus e facilitou a ascensão da extrema-direita no continente.

Quanto mais o aquecimento da Terra se afasta de 1,5°C, maior é o risco de que várias regiões dos trópicos sejam empurradas para além do limite da tolerância humana. Segundo o IPCC, nossa espécie evoluiu em climas amenos, com médias de 11°C a 15°C no ano. Até os anos 1990, menos de 1% da população mundial habitava regiões com médias anuais acima de 29°C, que um estudo considerou o limite da tolerância. Hoje já são 600 milhões. Caso o aquecimento global ultrapasse 2,7°C, que é o que acontecerá caso as metas nacionais atuais sejam cumpridas sem aumento de ambição, um terço da população mundial estará além do limite de tolerância humana no fim do século, o que só pode resultar em três coisas: morte, doença ou migração.

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O Departamento de Defesa dos Estados Unidos considerava a crise climática um problema de segurança nacional.

O mapa abaixo mostra as regiões do planeta que deverão virar “fonte” de movimentos migratórios e as que terão climas propícios a receber imigrantes. É um retrato de tensões geopolíticas prontas para acontecer, já que as migrações em geral ocorrerão das zonas mais vulneráveis dos países mais pobres para as zonas mais ricas do mundo. Esta é uma das razões pelas quais o Departamento de Defesa dos Estados Unidos considerava (antes do segundo mandato de Donald Trump) a crise climática um problema de segurança nacional.

O último cavaleiro, que evidentemente tem relação com os outros dois, é a morte. Um único evento extremo em 2003, a grande onda de calor da Europa, matou 70 mil pessoas num continente pego de surpresa. Cinco anos depois, o ciclone Nargis, em Mianmar, ceifou o dobro de vidas: 138 mil. Somente os dez extremos climáticos mais mortais de 2004 a 2023 causaram pelo menos 570 mil mortes, segundo a WWA (Rede Mundial de Atribuição). O número é subestimado, principalmente devido à dificuldade em contabilizar óbitos relacionados ao calor.

Essas mortes têm, como afirma a pesquisadora do IPCC Patrícia Pinho, “raça, gênero e geografia” preferenciais. Segundo o painel do clima, o número de mortes nas regiões mais vulneráveis na última década foi 15 vezes maior do que nas zonas mais abastadas do mundo. E, mesmo em lugares como a Europa, a maior parte das vítimas se concentra nos extremos de faixa etária e na base da pirâmide de rendimentos. A diferença de vulnerabilidade escancara um fato essencial sobre a crise do clima: as pessoas que menos contribuíram para o problema são as que mais sofrem e sofrerão.

As mortes do clima não são apenas humanas, claro. A mudança climática está agravando a sexta onda de extinção de espécies no mundo todo e, neste caso, os ecossistemas mais vulneráveis também são as primeiras vítimas. Ondas de calor marinhas cada vez mais frequentes, intensas e disseminadas estão causando mortalidade em massa de recifes de coral no mundo inteiro. As altas temperaturas da água fazem as colônias de coral perderem as algas que lhes dão cor e que garantem a alimentação dos corais. Sem elas, o coral fica branco e pode morrer. De 2014 a 2016, um episódio severo de branqueamento atingiu o maior banco de corais do mundo, a Grande Barreira australiana. O governo da Austrália estima que 30% dos recifes tenham morrido apenas nesse evento.

Os recifes de coral tropicais, berçários de vida marinha dos quais dependem milhões de pessoas em todo o mundo, serão provavelmente o primeiro grande ecossistema a desaparecer com a mudança climática. Seu limite de adaptação já foi cruzado quando a Terra esquentou 1 oC; o limiar de 1,5 oC do Acordo de Paris não os põe a salvo. Mas evitar que o aquecimento global ultrapasse 2 oC ainda pode poupar milhões de espécies em todo o mundo. Segundo o IPCC, nos ecossistemas terrestres, de 3% a 14% das espécies provavelmente entrarão em risco muito alto de extinção com 1,5 oC, chegando a 18% com 2 oC, 29% com 3 oC e 39% com 4 oC.

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Precisamos falar sobre “OVERSHOOT”

Mesmo que a humanidade consiga implementar com sucesso o Acordo de Paris e evitar os piores efeitos da mudança do clima, durante várias décadas esta geração e as próximas precisarão conviver com um aquecimento maior do que 1,5°C. Esse período, chamado de “overshoot”, corresponde ao tempo em que as temperaturas ficarão acima do limite de Paris somente por força do carbono que nós já lançamos e lançaremos nos próximos anos antes de zerar emissões líquidas em 2050 (se tudo der absolutamente certo). O Sexto Relatório de Avaliação do IPCC mostrou que em todos os cenários de emissões a temperatura global ultrapassará 1,5°C nos próximos 20 anos, e em apenas um deles ela voltará a ficar abaixo desse limite neste século (1,4°C, mais precisamente).

Mesmo que temporário, o overshoot, diz o IPCC, resultaria em “impactos severos e frequentemente irreversíveis” – em ecossistemas, abastecimento de água, segurança alimentar e energia. Por exemplo, geleiras pequenas em cordilheiras como os Andes, os Alpes e o Himalaia desapareceriam quase ou completamente, colocando em risco o suprimento de água de populações que dependem delas. Alguns ecossistemas seriam empurrados para além de sua capacidade de regeneração, como os recifes de coral em grande parte do mundo, florestas de sargaços, manguezais e marismas.

“Em cidades, o número de pessoas expostas a secas e enchentes muito provavelmente mais do que dobraria entre 2000 e 2030, com 350 milhões de pessoas a mais expostas a escassez hídrica devido a secas com 1,5°C de aquecimento”, diz o relatório, que prossegue: “Muitos impactos de trajetórias de overshoot seriam irreversíveis numa escala de séculos a milênios”. Entre eles estão a possibilidade de derretimento de geleiras e solos congelados (permafrost) e a perda de habitats costeiros.

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